Defensores do “cantinho do pensamento” dizem que sim, mas o conhecimento recente da neurociência coloca essa ideia em xeque


Adianta colocar a criança de castigo ou, em uma versão mais suave, num “cantinho da disciplina”? Essa é uma das dúvidas mais comuns de pais e cuidadores diante da “desobediência” infantil. Defensores do “cantinho do pensamento” dizem que sim, argumentando que o método dá aos pais uma estratégia que evita a violência.

Mas o conhecimento recente da neurociência coloca essa ideia em xeque, ao mostrar que o cérebro das crianças sequer tem maturidade para aprender um “bom comportamento” ou refletir sobre as regras da família durante um castigo.

Essas evidências científicas apontam que a criança só vai incorporar sentimentos negativos durante essas punições — por exemplo, ressentimento —, em vez de aprender habilidades importantes de vida e ferramentas que a ajude a controlar as próprias emoções.

Ao mesmo tempo, especialistas defendem que dá, sim, para montar em casa um “cantinho” que sirva para acalmar na hora em que as tensões e as brigas escalonam.

O cérebro infantil

Um ponto-chave das pesquisas sobre o cérebro infantil é o chamado córtex pré-frontal. É a área do cérebro que “nos ajuda a pensar racionalmente, controlar impulsos, refletir sobre sentimentos e gerenciar nosso corpo e emoções”, explica Claire Lerner, pesquisadora que ajudou a elaborar as diretrizes da organização desenvolvimento infantil Zero to Three, nos EUA.

Cérebro humano

Os cientistas descobriram que, durante toda a infância, mas sobretudo nos primeiros anos de vida, o córtex pré-frontal está imaturo. “O córtex pré-frontal está nos estágios mais rudimentares do desenvolvimento nessa idade”, diz Lerner.

Ou seja, do ponto de vista fisiológico, a criança ainda não é capaz de controlar a maior parte das suas reações, porque tem um controle ainda inconsistente delas. Quando é tomada por emoções difíceis, como frustração, raiva ou medo, seu corpo reage — por exemplo, “explodindo” em crises de birra.

“Ao contrário das crenças populares, crianças pequenas que não cumprem o que é pedido, perdem o controle de suas emoções ou se distraem facilmente não são ‘crianças más’ nem estão sendo intencionalmente beligerantes ou não-cooperativas”, explica o Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard.

Ela cita uma das famosas pesquisas em que as crianças são colocadas diante de uma guloseima — e perguntadas se preferem comê-la imediatamente ou esperar para receber um segundo doce. Embora, nesse estudo, muitas crianças de 3 anos tenham reconhecido que o melhor seria esperar para ter dois doces, prevaleceu na maioria delas o impulso de comer a única guloseima à sua frente.

Birra

“Claramente, elas sabem, pela lógica, que é melhor esperar, mas saber não é suficiente” para seu cérebro em formação, concluem os estudiosos.

“Sabemos que é só pelos 20 e poucos anos que essa parte do cérebro fica plenamente formada, o que também explica por que adolescentes são famosos por nem sempre tomarem as melhores decisões ou terem grande dificuldade em controlar seus impulsos”, conclui Lerner.

Mas, mesmo tendo isso em mente, como lidar com os momentos em que as crianças perdem o controle ou se recusam a cumprir tarefas do dia a dia?

Os desafios e as birras

“Essas dúvidas provavelmente aparecem em ao menos 75% das consultas que os pais fazem comigo, porque estão vivenciando algum tipo de desafio — batalhas sobre a hora de dormir, o tempo de tela, birras em público ou em casa, todas questões comuns da primeira infância”, diz Claire Lerner.

“Quando começou toda essa discussão sobre o ‘time-out’ (‘castigo’), nos anos 1990, meus filhos eram novos e era uma estratégia muito comum: ‘se você não parar com isso, vai para o quarto!'”, relata. “E daí começamos a aprender muito mais sobre o desenvolvimento do cérebro das crianças, e do que ele é ou não capaz.”

A estratégia ainda é defendida pela educadora infantil Cris Poli, conhecida por ter protagonizado o programa Supernanny na TV brasileira. Ela argumenta que um “cantinho da disciplina” evita gritos e agressões nas relações entre crianças e cuidadores, a partir dos 2 anos de idade.

“Desobediência? Coloque regras simples, discipline seus filhos”, ela diz, citando por exemplo a importância de uma regra para escovar os dentes após as refeições. “Você explica a regra no nível do entendimento dela. Desobedeceu? Você lembra, mostra a regrinha, dá um aviso. Se desobedecer de novo em 24 horas — não uma semana, mas sim 24h —, vai para o cantinho da disciplina. ‘Você vai ficar aqui sentadinho para pensar por que decidiu desobedecer’. Um minuto por ano de idade”, diz.

“Quando termina o tempo, você pergunta à criança: ‘você lembra (o motivo da punição)?’ Dá um beijo, abraço, parabéns. Você não fica nervosa, não bate, não grita. É diálogo. Porque disciplina não é agressiva, é com amor.”

Habilidades de vida

De fato, quando surgiu como uma alternativa às agressões físicas, o “cantinho do pensamento” trouxe um avanço — o problema é que ele desconsidera os conhecimentos mais recentes sobre o comportamento infantil, argumenta a psicóloga e autora Nanda Perim.

Ela cita as pesquisas da americana Jane Nelsen, cujo trabalho é base da “disciplina positiva”, corrente que defende a criação por meio não da punição, mas do ensinamento de habilidades de vida. Ao coibir desejos e impulsos sobre os quais a criança ainda não tem controle, o “cantinho da disciplina” desperta uma reação primitiva no cérebro infantil: a de “fugir ou lutar”, defende Perim.

“O cérebro vai reagir a essa ameaça ou fugindo, ou lutando. E isso pode (se traduzir) em baixa autoestima, de ela achar que é ruim, porque faz tanta coisa errada. Ou vai querer se vingar, para sentir que está no controle da própria vida, e vai fazer (o comportamento indesejado) de novo, mas escondendo dos pais”, ela diz.

“Com 6, 7 ou 8 anos, a criança está começando a desenvolver (controle emocional). E daí ela precisa de alfabetização emocional — dar nome às emoções dela, reconhecer como essas emoções mexem com seu corpinho, quais os gatilhos para elas brotarem, quais os gatilhos da calma para elas melhorarem. Isso é habilidade de vida. Mandando a criança ficar olhando para a parede, ela não vai aprender nada disso”, prossegue a psicóloga.

“Aliás, eu ensino muito mais habilidades de vida quando eu mostro ao meu filho que eu também sinto raiva e que administrar minha raiva é difícil. Porque meu filho olha para mim e fala ‘quando é difícil para mim, é porque eu sou uma pessoa, não é porque eu sou ruim e tenho problema’.”

Na mesma linha, Claire Lerner diz que as pesquisas sobre o cérebro “mostraram, para nós no campo (da psicologia infantil), que medidas punitivas são contraproducentes — porque passa às crianças a mensagem de que suas emoções não importam, de que ‘você é uma criança ruim e decepcionante’. E vimos que isso não reduz o comportamento (indesejado) para além do momento do castigo”.

Como lidar com comportamentos desafiadores

Quando a criança desaba porque não ganhou o brinquedo que viu na loja, é preciso entender que ela própria tem pouco controle sobre seu corpo. Na prática, diz Lerner, dá para ter empatia com isso sem deixar de impor limites claros.

“É uma linha tênue. Não é nem ‘tá bom, vamos comprar o unicórnio’, nem ‘você está sendo um mimado, um manipulador, nada de TV para você pelo resto do dia'”, diz. A primeira recomendação dela é manter a calma e ensinar à criança o que ela está sentindo. E também reforçar as regras e combinados da família.

“Eu diria que a maioria de nós neste campo concorda, de modos gerais, que é disso que as crianças precisam: compaixão, empatia, ideias para solucionar problemas. ‘Eu sei, é muito difícil quando você não pode assistir a mais um episódio do seu programa de TV favorito, mas é a nossa regra. Se você precisa de espaço para lidar com isso, sem problemas. Podemos pensar em outras coisas que você pode fazer’. Você está dando apoio, mas também estabelecendo um limite.”

Nanda Perim fala que é importante olhar não só ao comportamento da criança, mas ao que pode estar por trás dele. Toda essa discussão também gera ressalvas aos métodos de educação positiva – seja pela ênfase, em alguns casos, em atribuir o comportamento infantil a fatores como estresse e ansiedade. Seja porque algumas mães enxergam isso como uma ferramenta de culpabilizá-las.

Especialistas dizem que não é esse o caso. “Digo que não traz mais culpa, mas sim mais responsabilidade. (…) Claro que dá muito mais trabalho analisar o fundo do iceberg e não só a pontinha — se a criança está com sono, fome, falta de rotina, ou se sentindo deixada de lado, inúmeros fatores que levam a esses reflexos”, diz.

No exemplo da relutância em escovar os dentes, Perim sugere:

“A gente não vai explicar o que é cárie para uma criança de dois anos. A gente vai bolar uma rotina em que ela tenha tempo para três passos — entender, elaborar e aceitar que a hora de escovar os dentes está chegando, e dar duas opções: por exemplo, dois sabores de pasta de dente. Ao invés de dizer ‘quer escovar os dentes?’, que a criança vai responder ‘não’, você pode dizer ‘quer escovar os dentes com sabor menta ou morango?’ Porque a resposta imediata do cérebro na primeira infância é não, por ser a resposta que defende a autonomia dela. Se a gente dá opções, o cérebro vai ter que pensar numa resposta”, afirma.

“Se ela responde ‘ah, nenhuma das duas’. Daí a gente vai encontrar ferramentas para suprir uma necessidade de comunicação. Mas tem que entender que não é a criança testando a gente, não é um cabo de guerra. Com isso, a gente para de educar à base do medo, de ‘o que a odontopediatra vai pensar do meu filho?’, e passa a educar pelo lado do ‘pera lá: deixa eu analisar o que pode ser (a raiz desse comportamento)?’ (…) Na educação tradicional vão achar que ‘a mãe dessa criança é uma trouxa’. Mas na educação democrática é só a gente suprindo necessidades de acordo com o desenvolvimento da criança.”

Cantinhos de calma, e não de punição

Nessa linha, espaços da casa ou da escola podem ser vistos como locais não de punição a um comportamento, mas de regulação emocional em momentos de estresse. Dessa ideia surgiram os “cantinhos da calma”. “São espaços que ajudam a acalmar, com livros e objetos de conforto (almofadas, brinquedos que possam ser jogados ou apertados)”, explica Lerner.

A proposta é que a criança tope, voluntariamente, se acalmar ali — caso contrário, volta a ser uma medida punitiva.

Mesmo assim, nem sempre dá certo. “Tudo isso é maravilhoso quando funciona. Porque pode acontecer de a criança se levantar do cantinho do aconchego e correr freneticamente, talvez em condições inseguras, jogando objetos pela casa, arranhando, batendo, cuspindo — coisas que observo diariamente nos meus encontros com famílias”, afirma Lerner.

“É aí que os pais ficam confusos. O que você faz quando seu filho fica tão fora de controle que se torna destrutivo? É hora de repensar. Porque no fim das contas, não temos controle sobre as crianças, apenas controlamos a situação.”

Nesses casos, uma opção limite indicada por Lerner é manter a criança em um local fechado e seguro da casa, até ela se acalmar, enquanto os pais se fazem presentes de um modo calmo.

“Percebi que era tão prejudicial permitir que as criança fosse destrutiva daquele jeito, enquanto os pais imploravam para ela parar de bater, cuspir ou arranhar — mais prejudicial do que apenas dizer ‘entendo, você está muito nervoso porque não vamos ao parquinho, seu corpo está fora de controle, você tem este espaço seguro incrível onde pode bater, chutar, e eu estarei do outro lado da porta’. E sugiro aos pais que cantem ou falem do outro lado para mostrar sua presença. (…) Mas nenhum aspecto disso é punitivo. Para mim fica no limite de dar amor e apoio, calma e corregulação emocional”, defende Lerner.

Outro ponto importante: essas estratégias precisam ser combinadas previamente com as crianças, mas em momentos de calma, e não de raiva — quando o cérebro tem baixa capacidade de processar esse tipo de informação.

“Se os pais não têm um plano em mente, é quando as coisas saem do controle. Porque sem um plano eles se tornam reativos, e a reatividade é o que escalona essas situações”, afirma. E pais também precisam ter suas necessidades supridas nesse processo todo, defende Nanda Perim.

“‘O que eu preciso nessa relação com a minha criança? Por que eu estou gritando tanto? Quais os meus gatilhos? Quais estressores da minha vida estão me fazendo tão mal e me fazendo ser mais explosivo com a minha criança?’ Se eu entendo a minha criança melhor, e me entendo melhor, é claro que a relação é muito mais gostosa. A criança se sente ouvida, amada, respeitada, e responde a isso”, prossegue.

Perim cita outra pesquisadora do tema, Mona Delahooke. “Ela diz que você não precisa ser uma mãe perfeita para ter um filho incrível. Significa melhor do que os outros filhos? Não. Mas alguém que tenha habilidades de vida, que se conhece, que sabe lidar com suas emoções, seus gatilhos. Ele vai ser perfeito? Não. Mas pode uma pessoa incrível, que busque relações saudáveis, com habilidades de vida que nós não tivemos porque nossos pais não tiveram acesso a essas informações.”