Solos Flutuantes, segunda montagem do coletivo Poéticas da Meia Noite, estreia em Brasília, com recursos da Lei Paulo Gustavo


Quando o ator e diretor Thiago Carvalho embarcou para Brasília, em março de 2021, para passar uma temporada como professor substituto na Universidade de Brasília (UnB), ministrando aulas de interpretação teatral, ele não fazia ideia de que construiria uma ponte permanente entre a Bahia e a capital federal para desenvolvimento de trabalhos criativos.

Desse encontro com estudantes brasilienses surgiu o coletivo Poéticas da Meia Noite, grupo teatral interestadual que tem experimentando plataformas de criação à distância e que já está em sua segunda montagem com o trabalho intitulado “Solos Flutuantes”, com estreia de 26 a 29 de novembro, no Espaço Pé Direito, seguindo para o Espaço Multicultural Casa dos Quatro, para apresentações de 03 a 06 de dezembro. Os ingressos são gratuitos e poderão ser retirados no site do Sympla.

O projeto inicial era passar uns meses em Brasília e retornar a Salvador para dar continuidade aos seus estudos de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas Thiago encontrou um grupo de estudantes que, além de ávido por criar e se experimentar em cena, viu naquele professor baiano a chance de desenvolver suas próprias narrativas e textos para o teatro.

Thiago trabalha com um experimento criativo que tem como base a Cartografia Sentimental, proposta pela filósofa e psicanalista Suely Rolnik, através da qual é instaurado um processo de escrita coletiva que resulta num “textotrajeto”, uma escrita cartográfica de subjetividades que mescla memórias, descobertas, reflexões e ficção.

“Eu escolho um recorte, um tema a ser trabalhado e convido cada um e cada uma a escrever sobre uma sensação, daí começo a propor um movimento de olhar cartográfico, que irá se construir a partir da relação com o próprio objeto-processo”, diz Thiago, explicando que o processo, o percurso de investigação é o próprio objeto de pesquisa.

“Neste caminhar pesquisando, nosso foco de atenção primordial é na criação de documentos de processo, registros físicos e tangíveis do processo criativo, por isso se faz necessário pesquisar atuando para entender as questões atoriais, pesquisar dirigindo para entender questões da encenação, pesquisar escrevendo para entender questões dramatúrgicas”, complementa.

Durante as aulas na UnB, os estudantes de teatro tiveram contato com essa forma de investigação em arte, que assume o estado de ser da obra de arte não como objeto, mas sim como experiência. Quando o semestre letivo se encerrou e Thiago retornou a Salvador, os estudantes brasilienses foram atrás dele.

Compraram passagens e embarcaram para Salvador para dizer a ele que gostariam de continuar as pesquisas iniciadas em sala de aula. Assim surgiu a vontade de criar o coletivo Poéticas da Meia Noite, a princípio para aprofundar a ideia de poética a partir de Aristóteles, para depois seguir com os estudos sobre dramaturgia e criação da cena. Atualmente, o coletivo reúne seis estudantes da UnB, além de dez profissionais baianos e quatro brasilienses que desenvolvem cenografia, luz, design, fotografia, comunicação e mediação.

“O processo criativo é uma jornada de autodescoberta. Cada encontro era uma oportunidade de mergulhar mais fundo em nós mesmos, e o que emergia não era apenas o individual, mas o coletivo. Minha história não é só minha, ela está intrinsecamente ligada à história de outras mulheres negras”, reflete a atriz e estudante de teatro, Anna Ju Carvalho. “O processo com Thiago Carvalho nos fez olhar para dentro e, ao mesmo tempo, reconhecer que nossas memórias pessoais são parte de algo muito maior, uma luta contínua por espaço, voz e identidade”, concluiu.

Teatro de Grupo – Thiago Carvalho é cria e entusiasta do teatro de grupo, forma de produção e organização teatral na qual atores e atrizes se unem em torno de ideais comuns, e realizam trabalhos em continuidade. No início dos anos 2000, o teatro de grupo viveu um momento de grande efervescência na Bahia, com diversos grupos do interior se deslocando para a capital para estudar e se profissionalizar. Entre eles estava a Finos Trapos, do município de Vitória da Conquista, no Sudoeste Baiano, grupo do qual Thiago fazia parte. Ele chega a Salvador para fazer bacharelado na Escola de Teatro da UFBA, em 2010, junto a outros colegas de elenco.

O teatro de grupo também é tema de pesquisa do doutorado de Thiago, que se debruça sobre experiências de gestão de sedes de grupos de teatro, que ele entende enquanto espaços não só de criação, mas também de sustentação, de entendimento da linguagem teatral e da reflexão sobre políticas de acesso à arte e cultura.

Além de ser integrante do Grupo de Teatro Finos Trapos, Thiago também faz parte do Coletivo das Liliths e foi gestor da Evoé Casa de Criação, a sede desses dois grupos que funcionava no Largo dos Aflitos, no Centro de Salvador, e que depois mudou-se para a residência de um dos integrantes dos grupos por falta de recursos para manutenção. “Apesar de um contexto em que foi conquistada a política de editais, já não é mais possível para grupos de teatro, em especial, no estado da Bahia, se manterem apenas com recursos públicos, pois os meios e mecanismos são insuficientes”, lamenta Thiago.

Organizados enquanto grupo de teatro, os estudantes têm aprendido também sobre produção e gestão cultural, tanto que já estão submetendo projetos a editais e captando recursos. O próximo trabalho do grupo, “Solos Flutuantes”, foi contemplado por edital do Governo do Estado do Distrito Federal com recursos da Lei Paulo Gustavo. Para Thiago, essa formação em produção e gestão já devia fazer parte da grade curricular das faculdades de artes. “Uma política instituída possibilita a grupos e coletivos atuarem continuamente, e no caso dos estudantes, isso os coloca em outro patamar, que é o da profissionalização, do reconhecimento da profissão, e também da afirmação que o campo da cultura gera renda e emprego”, argumenta Thiago.

Para a atriz e estudante Gabriela Vasconcelos, a universidade oferece muitos aprendizados, mas não prepara para a realidade do mercado de trabalho. “Estar no coletivo me ajuda a abrir a lente para enxergar como funciona essa engrenagem, desde como é escrever um projeto a realizá-lo e prestar contas. É quase como se fosse uma segunda universidade”, afirma Gabriela.

Solos Flutuantes – O tema que deu início à investigação da escrita cartográfica no novo trabalho do grupo foi a ideia de casa, tendo como referência o livro “A Poética do Espaço”, de Gastor Bachelard. Mas não a ideia de uma casa erguida e pronta, ao contrário, uma casa em destroços, escombros, a ponto de se desfazer. É a partir desse lugar movediço que quatro atuantes do coletivo – Anna Ju Carvalho, Gabriela Vasconcelos, Fernanda Duarte e Davi Dias – iniciam esse processo de pesquisa, que é ao mesmo tempo individual e coletivo, pois embora partam da mesma provocação e se colaborem na produção textual, cada atuante chega a um resultado diferente, pois este depende das subjetividades e do processo de cada um.

Desta experiência dirigida por Thiago Carvalho surgiram quatro solos que são biograficção, ou seja, trabalhos que rasuram os limites entre autobiografia e ficção. Em As Frestas Empoeiradas da Memória, a atriz Fernanda Duarte encarna uma radialista em busca de memórias guardadas; no solo A Cidade dos Pequenos Causos, o ator Davi Dias conhece um guia que apresenta as melhores e piores histórias de moradores de uma pacata cidade; em O Balé Aquático do Devaneio, a atriz Anna Ju Carvalho é uma mulher sem memória, pois teve a sua infância roubada; e no trabalho Habitei Cantos Que Deveriam No Máximo Ser Frequentados, a atriz Gabriela Vasconcelos é uma escritora, uma vendedora de palavras que confunde os romances que escreve com suas histórias pessoais, e acaba por resgatar lembranças de perdas familiares.

“Cada solo traz uma questão que pulsa dentro de nós. No meu, por exemplo, foi a infância, essa saudade de um tempo que, na verdade, nunca foi tão doce assim”, diz a atriz Anna Ju Carvalho, lembrando os desafios da infância para uma garota negra. Para ela, esse processo de revisitação é doloroso, mas necessário para resgatar e entender o seu verdadeiro eu. “Outras questões que emergem nos solos também falam de resistência, de corpo, de pertencimento, e todas se conectam nessa tentativa de ressignificar o que fomos ensinadas a esquecer”, conclui Anna Ju.

Os solos também se relacionam com o conceito de teatro performativo, que se baseia na performance do artista, utilizando-se do corpo e das próprias experiências do atuante, visto aqui como ator-personagem, ou seja, as suas alteridades e subjetividades emergem em meio à ficção. No solo A Cidade dos Pequenos Causos, por exemplo, o estudante e ator Davi Dias apresenta personagens como “a vizinha”, “o guia” e “o encantador de mosca”, que representam facetas de sua própria personalidade e vivências. “O que vejo quando olho no espelho é uma bicha que já viveu muitas coisas, e por isso ela cria essa cidade e se fragmenta nela, os personagens são alter egos dessa bicha, que está buscando se entender também”, explica Davi.

O público brasiliense poderá conferir apresentações dos quatro solos, de 26 a 29 de novembro, no Espaço Pé Direito, e de 03 a 06 de dezembro, no Espaço Multicultural Casa dos Quatro.

Serviço

Local: Espaço Pé Direito
Vila Telebrasília 23 – Asa Sul, Brasília, DF, 70200-001
Horários: 18h e 20h30
Datas: – 26/11: As Frestas Empoeiradas da Memória (Fernanda Duarte)
– 27/11: A Cidade dos Pequenos Causos (Davi Dias)
– 28/11: O Balé Aquático do Devaneio (Anna Ju Carvalho)
– 29/11: Habitei Cantos Que Deveriam No Máximo Ser Frequentados (Gabriela Vasconcelos)

Local: Espaço Multicultural Casa dos Quatro
Endereço: St. de Habitações Coletivas e Geminadas Norte 708 SCLRN 708 Bloco F Loja 1 – Asa Norte, Brasília – DF, 70740-556
Horários: 18h e 20h30

Datas: – 03/12: O Balé Aquático do Devaneio (Anna Ju Carvalho)
– 04/12: Habitei Cantos Que Deveriam No Máximo Ser Frequentados (Gabriela Vasconcelos)
– 05 /12: A Cidade dos Pequenos Causos (Davi Dias)
– 06/12: As Frestas Empoeiradas da Memória (Fernanda Duarte)
Ingresso: Gratuito (com distribuição pelo Sympla)