
Por que o brasiliense não dá bom-dia? A evolução do espírito de Brasília
Há quem diga que o brasiliense não dá bom-dia. Uma constatação curiosa para uma cidade planejada sob a utopia da cordialidade, da convivência e do progresso. Mas o que teria acontecido com o espírito original de Brasília, aquele mesmo que embalava os sonhos dos candangos durante a construção da nova capital?
Os pioneiros que chegaram ao Planalto Central nas décadas de 1950 e 1960 ainda recordam, com nostalgia, o tempo em que a poeira das obras se misturava à esperança. A atmosfera era de entusiasmo coletivo. Havia solidariedade, gentileza e uma crença quase religiosa no futuro. Brasília nasceu como símbolo de um Brasil que acreditava em si mesmo — um país de bossa nova, de vitórias no futebol, de arquitetura moderna e de um presidente otimista e sorridente.
O então presidente Juscelino Kubitschek soube aproveitar esse entusiasmo. Com carisma e visão, ele manteve o ânimo dos operários que enfrentavam jornadas de até 16 horas diárias. Mesmo em condições precárias, os trabalhadores encontravam sentido naquilo que faziam: erguer a cidade que prometia inaugurar uma nova era.
O espírito Brasília: da utopia à realidade
O chamado “espírito Brasília” ficou famoso. Um sentimento de união, esperança e propósito compartilhado. Havia a sensação de que todos estavam construindo não apenas uma cidade, mas um ideal de país. A fé no futuro era contagiante. O dinheiro circulava, as obras avançavam e o otimismo parecia infinito.
Porém, o tempo transformou aquele sonho em algo diferente. Quando a poeira baixou e a cidade se consolidou, a magia começou a desaparecer. O candango, que um dia dava carona e cumprimentava com um sorriso, foi substituído pelo cidadão apressado, desconfiado, que vive cercado por muros invisíveis — mesmo em uma cidade famosa por não tê-los.
Brasília e a arquitetura do isolamento
A arquitetura de Brasília, tão admirada no mundo todo, também contribuiu para moldar um comportamento social único. O traçado monumental de Lúcio Costa e as curvas poéticas de Niemeyer, embora belos e inovadores, criaram uma cidade diferente de qualquer outra.
As largas avenidas, as superquadras e as grandes distâncias entre os espaços públicos geraram uma sensação de isolamento. O que deveria inspirar convivência acabou, em parte, incentivando o afastamento. O pedestre, figura essencial nas cidades tradicionais, perdeu espaço para os automóveis e para o ritmo acelerado da vida moderna.
Desigualdade e distanciamento social
Outro fator que explica o desaparecimento do bom-dia em Brasília é a desigualdade social, que aqui assume contornos especialmente visíveis. Segundo o Atlas da Violência de 2024, Brasília apresenta a segunda menor taxa de criminalidade entre as grandes metrópoles brasileiras. Ainda assim, é considerada a cidade mais desigual do país.
A renda média per capita do Lago Sul é mais de 20 vezes superior à das cidades-satélites mais pobres. Essa distância econômica reflete-se nas relações humanas: o convívio entre ricos e pobres é escasso, quase inexistente. Diferentemente de outras capitais, como Rio de Janeiro, Salvador ou Recife — onde as diferenças sociais se cruzam no cotidiano e onde o “bom-dia” é quase um gesto automático —, Brasília parece ter perdido a espontaneidade do encontro.
A cidade intimidadora
Brasília é, em muitos sentidos, uma cidade intimidadora. A escala monumental, o vazio dos espaços, o silêncio das largas avenidas e a frieza institucional da Esplanada dos Ministérios criam uma atmosfera distante. É uma cidade que exige adaptação e impõe certo anonimato.
A utopia inicial derreteu diante da realidade: a capital administrativa transformou-se em uma cidade burocrática, muitas vezes impessoal, que reflete as tensões do poder e da desigualdade. O resultado é uma população que, mesmo cercada por beleza arquitetônica e natureza, sente-se desconectada.
Quando o bom-dia foi embora
Talvez o “bom-dia” tenha ido embora quando Brasília deixou de ser uma promessa e se tornou uma rotina. Quando a esperança dos candangos foi substituída pelo ceticismo dos novos moradores. Ou talvez tenha desaparecido na mesma medida em que a cidade se tornou símbolo de distâncias — não apenas físicas, mas também emocionais e sociais.
O “bom-dia” é, afinal, um gesto de aproximação. E, em uma cidade onde as pessoas vivem separadas por zonas econômicas, muros simbólicos e quilômetros de asfalto, o cumprimento se tornou raro.
Vai voltar o bom-dia?
A pergunta que fica é: será que o bom-dia vai voltar? Pode ser que sim, se Brasília conseguir resgatar parte de seu espírito original — aquele sentimento de comunidade e propósito que unia pessoas de diferentes origens em torno de um mesmo sonho.
Talvez o retorno da gentileza dependa de algo simples: reconectar-se com o outro, com o espaço público e com a própria história da cidade. Porque, no fim das contas, o “bom-dia” é mais do que uma palavra. É um símbolo de convivência, empatia e esperança.
E se Brasília nasceu como uma utopia, nada impede que volte a ser um exemplo — não apenas de urbanismo e arquitetura, mas de humanidade.



