Entre o horário de almoço e após o expediente cansativo de uma agente policial, Patrícia Dumont deu aulas e ajudou na alfabetização de dona Socorro
O analfabetismo fez a história da Maria do Socorro Alves, 47 anos, mais conhecida como Dona Socorro, se confundir com a de mais de 11 milhões de brasileiros (segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios — Pnad — de 2020). A realidade da auxiliar de serviços gerais do posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF) da BR-070 (entre Águas Lindas e Ceilândia), entretanto, agora mudou. Com a ajuda da policial Patrícia Dumont, Dona Socorro vive os prazeres de, ao poucos, saber ler e escrever.
Trabalhando como policial há 16 anos, Patrícia contou parte dessa história. Segundo a agente — publicitária de formação —, a personalidade gentil de dona Socorro cativou a ela e aos colegas de profissão no posto, quase imediatamente, e saber que poderia ajudar a paraibana a conquistar uma dignidade do tamanho da alfabetização foi uma espécie de recompensa.
“Ela chegou e conquistou todo mundo desde a primeira semana, ela vai além do serviço dela, ela trabalha com muito carinho. E assim, a gente sempre conversa muito sobre a história de vida dela. Ela tem uma história de vida de muita batalha, ela chegou aqui sozinha, ela é do interior da Paraíba, e um dia ela me falou que já tinha conquistado tanta coisa, uma casa, e só faltava realizar um sonho de aprender a ler a escrever, e eu nem imaginava que ela não sabia, mas na hora respondi ‘a senhora vai aprender”, diz Patrícia.
A chegada de dona Socorro ao posto da PRF vai completar dois anos em novembro, mas a revelação do analfabetismo e as consequentes aulas só ocorreram no começo deste ano. Patrícia explica que a ideia inicial era auxiliar no ingresso em uma escola, mas que a suspensão das aulas por conta da pandemia impediram esse caminho. A agente não esmoreceu, e decidiu ela mesmo arregaçar as mangas e começar a ensinar Dona Socorro.
“Comecei do básico: letras, alfabeto, consoante, vogal. A gente aproveitava um almoço ou depois do horário de expediente mesmo, depois de um tempo eu propus pros colegas para me ajudarem a comprar livros, e assim a gente começou a dar mais agilidade para o processo. Eu dava atividades, esclarecia dúvidas pelo telefone, outros colegas começaram a ajudar e ela (a dona Socorro) sempre muito dedicada”, relembra Patrícia.
Dona Socorro lembra do processo de forma divertida e lúdica: “Foi uma história bem natural, a gente sempre conversa e durante um papo eu falei para ela que não sabia ler nem escrever. Então ali mesmo ela foi me explicando o alfabeto, as letras e eu sempre atenta. Ela sentiu que eu estava querendo aquilo, que eu realmente queria.
Isso foi no começo deste ano, aí em abril foi meu aniversário, ela se juntou com os colegas e me deram uns livros, que até hoje eu ainda guardo. Eu falava ‘olha tá bom de você me dá uma nota’, como se fosse uma professora e ela me passava os deveres deixava um recado ‘excelente, bom trabalho’”.
O esforço valeu a pena para Patrícia quando Dona Socorro conseguiu ler, sozinha, as primeiras palavras, frutos de um presente. “Depois de um tempo a gente foi presenteá-la e tinha uma dedicatória escrita, a ideia era que eu lesse para ela, mas ela mesmo conseguiu ler, todo mundo ficou muito surpreso, e tem sido assim, ela sempre tá surpreendendo.
Ela consegue entender e são apenas sete meses”, comenta a policial. Dona Socorro completa: “Eles se juntaram e me deram um diploma, com mais livros e uma dedicatória, e eu consegui ler, assim como quem tá apreendendo, mas consegui”.
Passado difícil, futuro brilhante
Além do analfabetismo, outro ponto em comum da história de dona Socorro com outros milhares de brasileiros é a luta para sobreviver. Vinda do interior da Paraíba, conta que nem sempre a capital a tratou com acolhimento, mas a gratidão pela vida (e pelas filhas) lhe basta.
“Quando eu cheguei aqui eu estava grávida de três meses, com duas filhas de 5 e 3 anos. Eu vim da Paraíba com a cara e a coragem, ficava nas paradas de ônibus, sem família. Fiquei sem comer até perder os sentidos, passei frio, minha filha sofre até hoje por conta da infecção de ouvido do frio. Me ofereceram dinheiro para ficar com as minhas filhas, mas eu não nunca fiz nada que elas pudessem se envergonhar, nunca roubei, nem beber e fumar eu faço. Foi muito difícil, mas sempre com a esperança de que a tempestade iria passar.
E passou mesmo. Com uma casa em Águas Lindas, um bazar, o serviço de diarista, a carteira assinada no posto da PRF e agora o início da alfabetização, dona Socorro pode vislumbrar a chance de um futuro brilhante. “Hoje, eu tenho onde morar, coisa que eu pensei que eu não ia ter, mas eu tenho. Eu sou uma vencedora”, desabafa entre lágrimas.
O alívio parece também vir da convivência com os agentes da PRF, dos quais dona Socorro faz questão de lembrar: “Eu gosto tanto, não deixe de anotar! Pra você ter uma ideia, na minha primeira semana de trabalho eu fiquei presa em casa com a porta emperrada, mas não queria perder o trabalho, fiquei tão agoniada que pulei do segundo andar e acabei quebrando meu pé.
Fiquei a ponto de perder o emprego, mas eles se juntaram e conversaram com a empresa para interceder por mim, porque como eu tive meu acidente fora da empresa em (período de) experiência eu podia acabar perdendo o emprego, mas graças a eles eu consegui ir ao médico, consegui fazer minha cirurgia, e consegui voltar a trabalhar. Lá que eu me encontrei, é um trabalho muito digno. Eu nunca tinha tido um trabalho como esse, com pessoas que me acolheram assim”.
A perseverança e resiliência de dona Socorro é atestada por Patrícia: “Eu acho que ela foi conquistando todos nós, não vou dizer que ela é uma mãe para mim só porque nós temos quase a mesma idade. Eu, como policial, vejo que algumas pessoas, por conta das dificuldades, vão para a criminalidade, escolhem um caminho ruim, mas ela não. Mesmo passando por tantos problemas, ainda assim, ela ficou com as filhas, e nunca cometeu um ato ilícito, nunca partiu para a criminalidade, essa perseverança é linda”.
Os próximos passos? Dona Socorro já tem até planos: “Pensei que nem tinha mais tempo, mas 47 anos ainda é tempo de aprender e eu quero continuar aprendendo, quero ir para o EJA (Educação de Jovens e Adultos), quero até fazer uma faculdade de matemática. Já até falo para ela (a polícia Patrícia) que quero ser contadora dela”.
Vale lembrar que a corrente do bem (e da alfabetização) não chegou ao fim com dona Socorro. Patrícia contou à reportagem que, inspirados nas aulas da auxiliar de serviços gerais, agentes de outro posto da PRF, no Recanto das Emas, também começaram a ajudar outro servidor terceirizado a se alfabetizar: “Eu não estou sozinha nessa história”.