Do abrigo de menores em situação de vulnerabilidade para o estúdio. Conheça Victória Inácio, a jovem moradora da Fercal que virou musa de fotógrafos em Brasília
“A vida é assim: feita de sonhos.E é isso que nos mantém vivos”, diz o trecho de uma música do grupo de rap Racionais MC’s que cabe exatamente na realidade de Victória José Inácio de Jesus, uma jovem moradora da Fercal, em Sobradinho, e com um sonho dos grandes: ascender no universo da moda. Filha de artesã e mãe de um bebê de oito meses, a garota foi descoberta por olheiros quando vivia em um abrigo para menores em situação de vulnerabilidade e tornou-se musa de fotógrafos no Distrito Federal.
A imagem e a postura da jovem contrastam com a rua de terra em que vive. Victória vestia um blazer verde, uma calça preta e apresentava um cabelo cuidadosamente finalizado quando apareceu segurando um bebê nos braços — o filho Miguel, de oito meses —, na porta da casa simples. Um dia antes, ela contou, tratou de lavá-los e desembaraçá-los para se apresentar às câmeras profissionais. A maquiagem também foi feita com afeição e zelo. A pele preparada com base e o traço perfeito do delineado sobre uma sombra azul clara colocada com primor no alto das pálpebras.
Victória é uma jovem tímida, de 18 anos, que se transforma quando se posiciona em frente à câmera. Mas nem sempre foi assim. Quando criança, ir à escola era difícil por causa do bullying com o cabelo, ou com a falta dele. Uma infestação de piolhos fez com que a mãe da menina não tivesse outra opção além de raspar as mechas volumosas. “Tive o cabelo curto na maior parte da minha vida. Quando era criança, eu e minhas irmãs ficamos carecas por um tempo, e os colegas zombavam da gente por causa disso”, relembra.
Mas a privação dos cabelos e o bullying na sala de aula não foram os únicos desafios na infância. Aos 14 anos, um problema familiar levou Victória e os irmãos a um abrigo para menores. Lá, viveram por aproximadamente quatro anos. Foi nesse lugar que ela aprendeu a se arrumar e conheceu pessoas que a ensinaram que amor-próprio é privilégio, e que o dela precisava ser construído na mesma medida em que ela descobria a beleza dos cabelos fartos.
“Tinha uma amiga que também morava no abrigo e que um dia me pediu para soltar o cabelo. Então, ela lavou meu cabelo e fez uma fitagem para definir os cachos. Eu gostei, e foi ali que eu descobri que meu cabelo podia ser bonito”, conta.
A beleza de Victória logo se fez notar. Olheiros acostumados a observar talentos ainda não lapidados viram na menina potencial para o mundo da moda. Os cabelos abundantes, os olhos amendoados, a boca pequena e o corpo esguio chamaram a atenção de uma agência de modelos quando ela ainda vivia no abrigo, com cinco de seus irmãos. E ela não deixou a oportunidade escapar.
No primeiro desfile, conta, estava nervosa, as mãos suavam, as pernas tremiam, mas a ansiedade não foi capaz de paralisar a vontade de caminhar na passarela. Daquele dia, em 2016, até aqui, são quatro anos sonhando com uma carreira ligada ao universo da beleza. “É o que eu gosto, me sinto feliz e realizada na frente das câmeras.” Mas, mesmo credenciada em uma agência de modelos, nem sempre tem sido fácil.
“A pandemia fez com que os trabalhos diminuíssem bastante. Além disso, para alguns, me falta o dinheiro da passagem e eu não posso ir. Recentemente, fui chamada para um evento em Taguatinga, mas tive que recusar porque eu não conseguiria chegar sem o dinheiro da passagem”, lamenta.
Em outros momentos, Victória trabalhou de graça, para divulgação. Mesmo assim, sabe que nem sempre vale a pena. “Uma vez, precisei pagar a passagem e levar meu almoço. Passei o dia trabalhando e não ganhei nada. Mesmo assim, eu sigo tentando”, comenta.
Entre os trabalhos, estão editoriais para revistas, eventos de noivas, desfiles e ensaios fotográficos. No entanto, os rendimentos ainda não foram suficientes para comprar uma cama, por exemplo. Na casa, só há uma, a da mãe e do padrasto. Ela, os irmãos e o filho dormem no chão, espalhados pelos dois cômodos do barraco erguido dentro da construção que um dia será a casa da família.
A mãe e o padrasto de Victória tentam construir a casa com três quartos há mais de três anos, mas as condições financeiras não permitiram levantar nada além da fundação e das paredes da residência. A família vive, basicamente, com o salário da aposentadoria do padrasto e a renda da artesã, que vende peças de crochê e hortaliças que planta em um canto do quintal. Ainda assim, a jovem mostra com orgulho o que está construído e com carinho o local onde será seu futuro quarto.
Ela também conta com orgulho que, em março deste ano, se tornou musa do fotógrafo italiano Ivan Bellino, que já clicou a beleza da brasiliense mais de 2 mil vezes. “A postura elegante, os olhares profundos e impactantes, o talento em posar na frente da câmera sem precisar de muitas orientações e a capacidade de entender na hora o que o fotógrafo quer extrair dela. Foi uma excelente parceria, que produziu imagens muito apreciadas”, diz o italiano, que vive há 17 anos no Brasil. “Desejo para ela um caminho de sucesso, como merece”, finaliza.
O caminho de sucesso sonhado pela jovem é o combustível para seguir em frente. Desde a casa em que vive, que ainda está em construção, até a carreira de modelo e o trabalho como influencer no Instagram.
“O meu sonho é ver a minha filha realizando o sonho dela. Eu digo sempre: ‘Vai em frente, minha filha. Não é porque a gente mora aqui, nesse barraquinho, que você vai parar não. Você vai mudar daqui melhor ainda, você vai dar a volta por cima’, digo a ela para que não deixe o sonho para trás”, conta a mãe de Victória, Fátima José Inácio, 44 anos, sempre com um sorriso no rosto.
A história da jovem modelo passa pelas contrariedades na infância, pela estada no abrigo e maternidade solo, mas o olhar de Victória revela que sua existência é mais complexa que isso. Há sorriso, afeto e sonhos. “Agora eu quero voltar a estudar, é só meu bebê completar 1 ano e quero me dedicar a aprender para dar um futuro bom para o meu filho. Quero fazer uma faculdade, ter minha casa e poder ajudar minha família.”