Projeto pretende abrir espaço para novas construções e adensamento em áreas vazias no entorno do Plano Piloto
Brasília completa nesta terça-feira (21) seis décadas de existência, em meio a uma ampla discussão a respeito da necessidade de se transformar para garantir desenvolvimento e resolver sérios problemas estruturais, que afetam principalmente seu entorno.
Enquanto a população do coração de Brasília, concentrada no Plano Piloto, usufrui de alta qualidade de vida, as demais regiões administrativas sofrem com falta de planejamento, trânsito carregado, transporte público ineficaz e violência. Muitos falam na falência do sistema das chamadas cidades-satélites.
O projeto urbanístico de Lúcio Costa, vencedor do concurso elaborado à época, desenhou Brasília no formato de um avião, com um eixo monumental -onde está a Esplanada dos Ministérios- e as asas para servirem de moradia e oferecerem serviços à população.
O projeto do Plano Piloto também inovou ao setorizar a cidade, designando áreas específicas para a operação de determinadas atividades, como setor hoteleiro, setor de gráficas, setor comercial.
Uma das principais discussões recentes na cidade -além do coronavírus- é a possibilidade de flexibilizar as regras de urbanismo do Plano Piloto, que são tombadas pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Após ter recebido, recentemente, parecer do órgão sobre essas questões, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação local pretende encaminhar um projeto para audiência pública até agosto, para seguir depois ao Legislativo ainda neste ano.
“A área tombada é um tesouro que nós temos e que devemos preservar”, disse a secretária-adjunta Giselle Moll. “Mas isso não significa deixar como está. Temos de conciliar o desenvolvimento urbano com essa preservação”, completa.
Uma das propostas do chamado Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB) flexibilizaria algumas regras de setorização. A proposta prevê, por exemplo, transformar os setores comerciais em zona de interesse social, abrindo espaço para moradias.
A secretaria calcula que há 7.000 imóveis desocupados nessa área que poderiam ser readequados.
Outra tema em discussão é a elaboração de um novo plano diretor, que abriria espaço para construções e adensamento nas regiões vazias no entorno do Plano. A medida pretende criar novos polos e cortar a dependência econômica das cidades-satélites com Brasília.
Uma parte da população questiona as mudanças no plano urbanístico e teme a descaracterização da cidade.
“Brasília é um patrimônio histórico. Não se deve abrir mão disso para resolver problemas pontuais, como o trânsito”, diz a dona de casa Angélica Sá, 51.
O Distrito Federal, em sua origem, não foi pensado para ser populoso. O edital do concurso previa população de 500 mil habitantes no ano 2000, mas essa marca já havia sido ultrapassada em 1970. Agora, chegando aos 60, conta com 3 milhões de pessoas.
“Dois fatores são essenciais para entender os problemas de hoje: o grande afluxo populacional e a falta de descentralização. Os imigrantes que chegaram depois foram levados para fora de Brasília, mas continuaram trabalhando aqui”, disse o professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) Aldo Paviani, que vive há 50 anos no Distrito Federal.
Paviani relata que favelas que existiam dentro do Plano Piloto, como duas na Asa Norte, foram removidas pelo poder público.
“Em um dia, colocaram essa população em barracões em Sobradinho e outras localidades”, completa.
Essas novas comunidades começaram a se desenvolver ao longo dos anos, desacompanhadas de planejamento do poder público.
Algumas, como Taguatinga, atualmente mantêm certa autonomia em relação a Brasília, com atividades econômicas regionais. A maioria, no entanto, ainda serve de cidade-dormitório, e os deslocamentos diários para essa região provocam congestionamentos e evidenciam a precariedade do transporte público.
“Não há como separar o problema de mobilidade da questão da ocupação do solo”, afirma o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Unb Benny Schvarsberg. Além da explosão demográfica, ele cita a especulação imobiliária e a desigualdade sócio-espacial como causas dos problemas atuais.
“É preciso democratizar o centro”, completa, citando que seria vantajoso, em caso de possíveis novos loteamentos no Plano Piloto, reservar parte das habitações para famílias de renda inferior, quebrando a dinâmica de que classes menos favorecidas moram longe do trabalho.
A dicotomia centro-periferia existe em grande parte das capitais mundiais. No entanto, o que torna Brasília um caso particular é a grande distância entre o Plano Piloto e as demais regiões administrativas.
“Existe um adensamento populacional muito baixo, dentro e fora do Plano”, afirma o professor do departamento de transportes da Unb Paulo César Marques da Silva.
O professor explica que a baixa densidade populacional leva o transporte coletivo a sofrer com pouca renovação de passageiros. As viagens são feitas de ponta a ponta, o que torna o transporte caro e ineficiente.
O improviso na formação dos espaços fora do Plano Piloto também permitiu a predominância da favelização em partes do Distrito Federal.
A 37 quilômetros do Palácio do Planalto, a favela Sol Nascente já concentra uma população parecida com a da Rocinha, no Rio, em torno de 95 mil pessoas.
Na extremidade da comunidade, chamada de Trecho 3, ruas enlameadas, fossas de esgoto que desembocam nas vias e alagamentos são cenas comuns. Na parede de uma casa, a pichação “se roubar morador, vai para o saco”, mostra a existência de um sistema de Justiça paralelo.
A violência é outro indicador que mostra a existência de dois mundos distintos. A Secretaria de Segurança Pública comemora o menor índice de homicídios em 35 anos, 13 por 100 mil habitantes, mas os dados permanecem muito desiguais em relação à localidade.
Em todo o Distrito Federal, por exemplo, nos três primeiros meses do ano, foram registrados 115 homicídios. Em Brasília, foram apenas cinco.